Mais
uma nova entrevista da nossa série, que traz desta vez o frontman da banda de
Paulo Afonso, Órbita Móbile. Aqui neste papo, o Augusto Kuarupp mostrou a grande
quantidade de influências que o grupo traz consigo e que ajudaram a formar o
conceito do seu álbum de estreia, Sonho Robô. A formação do conceito do EP e as
plataformas onde ele é divulgado, as suas influências, a cena roqueira da
região de origem do conjunto, formatos de música, quadrinhos, filmes, séries, livros
e tecnologia foram tratados com profundidade nesta ocasião. É se ajeitar onde
está e aproveitar a leitura!
SOTEROROCKPOLITANO
- Augusto, gostaria de começar a nossa conversa falando um pouco sobre
quadrinhos. Mesmo existindo tantas obras interessantes nesse universo e com
tantos profissionais de outras áreas utilizando esse meio (o Chuck Palahniuk
escreveu a sequência d’O Clube da Luta exclusivamente para HQ e o diretor
Christopher Nolan autorizou um spin-off de Interestellar em quadrinhos), as
graphic novels ainda não são tão
exploradas de acordo com o seu grande potencial. Como você enxerga esse fato do
quadrinho ainda não ser amplamente utilizado e aproveitado?
Augusto
Kuarupp - Boas menções as que fizeste, eu citaria ainda outras,
como as HQs digitais produzidas para uma das minhas séries prediletas, que é
Fringe; e ainda as que são feitas para Star Wars, dentre muitas. Em verdade,
existe sim um mercado potencial para quadrinhos e esta é uma linguagem muito
explorada para expandir universos ou dar conta de personagens que se destacam
em determinados contextos narrativos como os que citamos, não fosse assim,
essas franquias não utilizariam deste instrumento. Entretanto o que podemos
observar é que essa nossa percepção geral de que as “graphic novels não são tão
exploradas” se deve mais do nosso contato com o mercado brasileiro de
quadrinhos, que importa mais do que produz localmente, e também tem por hábito
distribuir HQs das grandes franquias internacionais. Esse é um problema que se
vive no Brasil não só em relação às HQs, mas similarmente com o cinema também,
que franqueia mais espaço para produções estrangeiras que nacionais. Por um
lado, quando se privilegia produções estrangeiras, o mercado acaba forçando os roteiristas
e desenhistas nacionais a uma situação marginal, que basicamente é a produção
independente experimental - que vive as agruras da luta contra as grandes
distribuidoras e produções milionárias - ou trabalhar sob encomenda para
atender a interesses corporativos – e, neste último caso, termina cerceando a
qualidade imaginativa e experimental da narrativa que se faz por aqui, quando
para sobreviver você precisa fazer cartilha para ensinar pessoas a economizar
energia, que é um objetivo nobre, mas limitante. Do outro lado tem o público,
que foi formado por décadas pela Marvel e Dc Comics e produção japonesa com
honrosas exceções ao Maurício de Souza – empresas que dominam o mercado
editorial de quadrinho no Brasil e se articulam com produções em massa de
animação para TV – e que, portanto, formaram leitores que costumam receber com
estranheza qualquer produção que não tenha aquele grau de qualidade editorial
ou lógica narrativa. Por fim, e falo do Brasil, de uma forma geral por aqui, se
acha que o quadrinho é uma linguagem menor, mais para o entretenimento e menos
para a arte, daí porque poucas ou quase nenhuma das nossas produções mais
populares fazem interface com as graphic novels, por exemplo, houve boatos
sobre uma versão de “Tropa de Elite” para quadrinhos – que aparentemente
poderia ter sucesso – mas me parece que não passaram de boatos, por quê? Não
tenho resposta, mas sei que esse foi um dos filmes nacionais de melhor retorno
em bilheteria, então podemos supor que falta de recurso para tocar um projeto
desses não era exatamente a questão.
SRP
- Como surgiu a ideia de fazer uma história em quadrinhos inspirada no próprio
disco e, principalmente, dela ser mais uma plataforma de distribuição e
divulgação do Sonho Robô?
AK
-
Mencionamos acima algumas produções para cinema e TV de ficção científica que
se utilizaram da linguagem em quadrinhos: Fringe, Interestellar, Star Wars,
etc... e podemos citar os X-Men – pra ficar apenas num título de super-heróis
que situam suas narrativas em realidades de ficção científica. Ocorre que, para
um gênero como o sci-fi, o quadrinho termina sendo um importante aliado para
dar materialidade a universos fantásticos imaginativos, porque no desenho, tudo
cabe e você não precisa fazer um orçamento para montar um cenário futurista,
basta desenhá-lo. Esses insights eu tive durante um curso de roteiro transmídia
para quadrinho que eu tomei com o professor Marcelo Lima, embora já tivesse
chegado com a inspiração prévia da HQ lançada pelo Gorillaz para o seu primeiro
álbum, mas no curso aprendi que diferente do que fez a banda do Damon Albarn,
eu poderia criar vínculos narrativos menos literais e lineares, e mais
expansivos e orgânicos, que é a tal da transmidialidade. Então já mais à frente,
após o curso, pensei em radicalizar o conceito de transmidialidade
transformando o quadrinho como plataforma de acesso ao álbum “Sonho Robô”, algo
como: se vamos tratar de ficção científica, vamos dar uma experiência
tecnológica a quem for ler. Muito embora, eu tenho dito que é uma plataforma,
mas eu prefiro pensar que o quadrinho é o próprio álbum, no sentido que não
vejo mais muito sentido no CD ou até mesmo no vinil, que só me lembram que
estou retendo carbono de origem não renovável na minha estante, peças de
plástico que acondicionam a música de forma estática, e tudo isso por uma capa?
Ou por algumas frequências a mais? A revolução do compartilhamento da música
digital preconizada pelo Napster criou dobras culturais que não podem ser
desdobradas, o “streaming” não é mais uma plataforma, é um comportamento. Neste
sentido resolvi apostar no quadrinho por ser um mediador de todas essas coisas,
feito de matéria prima de origem renovável, é uma obra que complementa
narrativamente a obra musical, ao adquirir uma HQ, você leva duas obras com
grande potencial de mobilidade e portabilidade, podendo alcançar também
públicos mais diversos.
SRP
- Se passaram dez anos entre o início das atividades da Órbita Móbile até o
lançamento do seu primeiro trabalho. O quanto esse tempo foi importante para a
concepção do EP e para a formação do perfil transmídia da obra?
AK
-
Bastante importante. Há dez anos eu tinha apenas uma ideia de aonde queria
chegar, que basicamente era fazer um rock que misturasse música eletrônica e
rítmica brasileira de forma original. Comuniquei isso a alguns parceiros
músicos, mas o único que sobreviveu comigo a essa epopeia foi Igor, que é
baterista da banda, em muito por grandes afinidades musicais, mas também
conceituais – ele, como eu, é fã de ficção científica. Viemos então
desbravando. Tivemos que aprender a usar softwares de produção eletrônica, e
depois aprender como misturar isso com rock. Fomos para Salvador, eu em 2008 e
ele em 2009, e enquanto eu me dediquei a pensar e me preparar artística e
filosoficamente para construir os universos narrativos que imaginava – o curso
de roteiros transmídia entra nesse bojo –, Igor foi cursar “composição e
regência” na UFBA, o que nos deu suporte para pensar a música de forma mais
sci-fi, a partir do ponto de vista de sua engenharia propriamente. Com o tempo,
fui atualizando os conceitos, daí que saímos de “mistura musical” para
“radicalização da abordagem híbrida” ou “hibridismo radical”; e unindo nossas
áreas de conhecimento de forma conjunta, desenvolvemos uma metodologia
composicional própria, que denominei de “método para expansão de linguagens
híbridas e diversas”, e isso foi o que deu suporte para o nascimento de “Sonho
Robô”. No nosso soundcloud, é
possível ouvir uma versão de Rota do Tempo de uma demo nossa de 2010, e a atual
para o zip álbum “Sonho Robô” – observar a diferença entre as versões diz muito
do nosso processo de aprendizagem, sobretudo porque esta música foi a primeira composição
do álbum, já em 2007, quando ainda não sabíamos que álbum estávamos produzindo.
SRP
- Sonho Robô tem uma atmosfera forte de futurismo sci-fi em sua música e em seu
texto também. Nos fale sobre o conceito do EP, e quais as obras que incidiram
com mais influência para a concretização do disco?
AK
-
Do ponto de vista conceitual narrativo, de fato estamos falando de Isaac Asimov,
que é o ponto de partida para o gênero sci-fi quando falamos de robôs - mesmo
que eu citasse obras do audiovisual que influenciaram nossa narrativa, como
Battlestar Galactica, Blade Runner ou a animação Big Hero 6, seriam sempre
influências subjacentes, visto que é a literatura de Asimov que subsidiou a
maior parte de todas essas produções posteriores. Era sem dúvida um gênio, que
como escritor – artista – chegou inclusive a criar leis fundamentais de
robótica, que balizam ainda hoje pesquisas científicas neste campo. Em 2012,
Rafa Dias, que trabalhou conosco alguns meses, me enviou uma base eletrônica
que, por conta de umas texturas sonoras, o faziam lembrar-se de sons robóticos,
e ele me mandou com uma sugestão de título: vida robô. Eu gostei da base e me
pus a pesquisar logo sobre o que iria escrever nessa música, e de cara intuí o
Asimov, algo como “robô=Asimov”. Então bati com um de seus livros de contos
“Sonhos de Robô” e de pronto achei que falar de sonhos renderia mais
subjetividade que falar da vida, porque deslocaria o som para um lugar mais
etéreo que é o do sonho, em contraposição ao pragmatismo que é a vida. Mas não
bastava copiar o Asimov, então, ao invés de falar de robôs que sonhavam,
resolvi optar por uma narrativa que transformasse o próprio sonho em um robô,
um algoritmo de inteligência artificial que simulasse sonhos e ativasse as
sinapses cerebrais de uma humanidade que, num futuro distópico (futuro?), tendo
perdido a capacidade de sonhar, precisou usar do expediente tecnológico para
reprogramar o cérebro para esta habilidade esquecida. Esse é o arcabouço
narrativo do zip álbum, mas, sonhar com o quê? Seria a pergunta subsequente.
Então tentei discutir nas letras diversos aspectos da liberdade para me
aproximar mais dos questionamentos filosóficos que embalam a literatura do
Asimov, desde o paradoxo da liberdade na primeira faixa do disco: enquanto a
liberdade for uma meta, apenas podemos fingir que somos livres; a questões de
liberdade nas relações amorosas: liberdade de ir, liberdade de querer ficar. Do
ponto de vista musical, de forma bem sucinta, posso dizer que encontramos
suporte na obra do Radiohead e da Nação Zumbi, além das trilhas sonoras do
cinema sci-fi.
SRP
- É possível perceber várias influências no som da Órbita Móbile, mas o que
você tem escutado ultimamente? O que tem mais lhe chamado a atenção na música?
AK
-
Olha... eu tenho uns dois tipos de audição. Um conjunto de bandas e artistas
que eu sempre ouço e outra mais randômica. Sempre tenho na playlist Radiohead,
Asian Dub Foudation, Nação Zumbi, Björk, UNKLE e sei lá... um monte de coisas.
Mas ultimamente estou pesquisando discos que foram influenciados pelo maguebeat
e que não foram rotulados como tal, e fui bater num disco da Rebeca Matta
chamado “Garotas Boas Vão Pro Céu, Garotas Más Vão Pra Qualquer Lugar”, que me
impressionou pela atualidade do som numa produção que é de 2000. Tenho escutado
também de forma mais randômica os rappers, tem uns caras de um grupo chamado
“Run The Jewels” que são fabulosos, e curti o último disco do Kendrick Lamar e
do Drake. Semana passada comecei a ouvir o novo álbum do Kasabian, que é legal,
gosto bastante do Kasabian. Viajei esses dias e voltei com um álbum do Fatboy
Slim no celular, o “Halfway Between The Gutter And The Stars”, alguém me disse
que concorreu nas paradas com um disco do Moby em algum momento, achei uma
competição curiosa e baixei, é interessante. Assino uns canais de funk no Youtube
e vez por outra escuto o que tá rolando, nem sempre é animador, mas às vezes me
ocorrem uns insights. Escuto sempre muita música erudita também, sou fã de Philip
Glass e posso passar um dia inteiro só ouvindo música cigana.
SRP
- O disco foi seguido pela turnê Alembaía, que passou pelas cidades de Rodelas,
Paulo Afonso, Abaré e Chorrochó. Este também é o nome do movimento cultural
difundido pela banda e que possui o intuito de mostrar a produção que acontece
no interior da Bahia. Qual a realidade da cena vivida pelas bandas e artistas
da cidade e regiões próximas?
AK
-
Resguardas as proporções, não é muito diferente que em Salvador. Bandas de mais
apelo de massa encontram mais oportunidades que as bandas alternativas, sejam
em festas particulares ou com apoio de recurso público das prefeituras. Não há
política consistente voltada para cultura alternativa, e quando há espaço em
eventos públicos o cachê é simbólico sob alegação do potencial de atração de
público. Mas o que pesa, de fato, é a quase inexistência de equipamentos para
suportar produções alternativas independentes, bem como a ausência de
instrumentos de mídia de massa que propaguem a produção local, o que torna a
atitude empreendedora algo hercúlea. Muitos dos movimentos e iniciativas que
tomaram pé nos interiores nos últimos anos foram desestimulados pela falta de
amparo nestas questões mencionadas. Paulo Afonso, por exemplo, indiscutivelmente
já teve uma das melhores e mais diversas cenas de rock do Estado no início
deste século, mas quem ficou sabendo? Que apoios teve? Assomado a isso, as
bandas de entretenimento de massa, com mais estrutura financeira, terminam
catalisando os melhores músicos da cena alternativa sob pretexto de
“profissionalizá-los”, interditando-os e consumindo assim toda a energia
criativa dos movimentos alternativos independentes. Neste sentido – de forma
sintética – posso dizer que o movimento Nação
Cultural de Alembaía propõe criar uma rede de mobilizadores
e fazedores de cultura no interior do Estado, para de forma coletiva,
fortalecer e visibilizar iniciativas, desenvolver tecnologias sociais e
compartilhar conhecimento.
SRP
- Para encerrar a entrevista, sempre deixo esse espaço para o entrevistado
mandar mais um recado. Pode deixar o seu!
AK
-
FORA TEMER!