A obra escolhida desta vez para ilustrar esta coluna é de um dos principais escritores de sci-fi que este planeta, ao menos nessa dimensão, já teve. O Philip K. Dick pensou fora da caixa como ninguém e proporcionou a outras tantas pessoas, mundos e situações nas quais são possíveis de se inserir com extrema facilidade e, de fato, ir para um outro lugar que não esse que conhecemos.
Realidades Adaptadas (editora Aleph, 302 páginas [2011]) era a o livro ideal para o que eu estava procurando para o momento. Uma coletânea de contos, histórias curtas para se degustar cada uma com calma, porém sem levar muito tempo nelas, e com um detalhe em sua premissa que atiçou ainda mais a minha curiosidade: todas elas ganharam adaptações cinematográficas. Para quem gosta de literatura e cinema, principalmente da primeira, esta é uma questão de provoca desconfiança e certo sentimento de repulsa quando estes dois universos colidem.
Querer saber como os contos se transformaram em películas, partindo da visão do seu autor original, é um exercício de imaginação e lógica válidos, como em uma engenheira reversa para quem viu primeiro aos filmes. Como seria possível uma história, ainda mais sendo tão curta, ser transformada em uma produção cinematográfica de proporções blockbusteranas? O que ficou de fora e o que foi incluído? O quanto isso afetou na criatividade dos responsáveis pela adaptação? O resultado final ficou bom, ou não ficou?
Tentar desvendar como se fez isso, foi uma boa atividade para entender um pouco mais sobre como essas coisas funcionam e, ao fim, me senti mais do lado daqueles que enxergam com desconfiança, de canto de olho, uma nova adaptação anunciada. Sempre defendi que cada mídia tem a sua maneira de contar uma narrativa, cada uma tem a sua linguagem e ainda acredito bastante nisso. Muitas vezes se faz necessário mexer em uma obra de maneira que ela seja melhor entendida para o publico que consome tal mídia, até mesmo quando o caminho é inverso. Mas o que fica mais explícito lendo uma obra dessa é que muito se interfere no texto de origem, seja tirando elemento demais, ou colocando elemento demais. É praticamente uma festa da liberdade desenfreada do que se pode fazer, e o que não se deveria tantas vezes, em uma versão para as telas. O que só fortalece e valoriza ainda mais o texto original.
Não assisti à todas adaptações desses contos e creio que fiz o certo. Assisti a apenas duas delas, O Relatório Minoritário (Minority Report - A Nova Lei) e Lembramos Para Você a Preço de Atacado (O Vingador do Futuro). Ambas sucesso de bilheteria. No texto, a primeira conta a história de um agente policial da divisão pré crime, no qual precogs, videntes em estado social nulo, vivem ligados à equipamentos tecnológicos, preveem crimes e permitem que a polícia evite tais ocorridos antes mesmo que os fatos aconteçam, condenando, assim, o criminoso. Isso até que o principal profissional do departamento vê o seu nome surgir do aparelho. Daí começa a aventura para ele provar a sua inocência, ok, você já deve saber pelo famoso filme do Tom Cruise, mas a volta que se dá na película para se resolver a questão, com tanta coisa que não há no original chega a ser constrangedor.
Mas o melhor exemplo fica com o segundo citado acima. Nas duas versões que ganhou para o cinema, você consegue enxergar os elementos principais da trama: o trabalhador que quer visitar Marte, mas não pode por que é pobre; ele sabe que só vai conseguir isso se implantar, em sua mente, uma memória falsa de que esteve no planeta vermelho; a contragosto da mal humorada esposa ele procura uma clínica que faz esse serviço; no procedimento algo da muito errado e lá, então, ele descobre que é um agente secreto, que fez uma missão ultrasecreta em terras marcianas e que precisou, claro, ser apagada da sua memória por questões de segurança. Pronto, a partir daí, nem o filme com o Schwarzenegger, nem o com o Colin Farrel, optam pela decisão final do Dick, partem para caminhos distintos um do outro, que não superam os desdobramentos e conclusão encontrados no conto. Conclusão e desdobramentos esses que, nas linhas do seu autor, são mais impactantes, surpreendentes e consideravelmente instigantes. Se eu já não gostava do remake de 2012, agora, então... Quanto ao filme de 1990, a nossa relação afetiva me mantêm próxima a ele (sim, esse é um bom filme)!
Depois de cada leitura dos outros cinco contos, me limitei a conferir somente os treilers dos seus filmes. Sinceramente, para um bom entendedor, dois minutos de edição de imagem bastam. Em Segunda Variedade (Screamers - Assassinos Cibernéticos), um mundo devastado pela guerra sofre com a ação de uma arma feita pelo próprio homem: esferas metálicas com garras, sedentas por carne humana, e que evoluem em sua forma a fim de consumar o seu propósito sinistro. Acho que vi um pingo disso em um dos episódios de Black Mirror. Em Impostor (Impostor), o protagonista é perseguido pelo governo por ser considerado um robô projetado por inimigos alienigenas, que tomou a sua forma e que está prestes a acionar uma bomba letal.
Em O Pagamento (O Pagamento), um operário, por condições de contrato, tem retirada de sua mente a lembrança dos dois últimos anos de sua vida, nos quais trabalhou para a empresa Rethrick. Ao pegar o seu pagamento, recebe a notícia de que ele mesmo decidiu, durante o período de trabalho, receber bugigangas (sete ao todo), ao invés da pequena fortuna anteriormente combinada. Sem demora, ele percebe que esses trecos são mais valiosos do que ele imaginava. No conto O Homem Dourado (O Vidente), Dick traz uma caçada a um mutante ameaçador, que possui o dom da vidência, explorando de maneira interessante a relação espaço e tempo, e até mesmo como trabalha o protagonista da história. É herói? É vilão? É inevitável? Enfim, em Equipe de Ajuste (Os Agentes do Destino) o autor traz para a roda uma história de vida simulada, na qual o personagem principal se vê em uma situação em que a sua percepção da realidade é quebrada e lhe é revelado algo inusitado. Me parece ter um pouco de elemento autobiográfico nesse conto.
O que se vê nessas sete histórias, e que é um elemento importante na narrativa do Philip K. Dick, é o seu poder de síntese. Em todos os contos a fluidez do seu texto permite que o leitor se prenda ao que ele quer contar, de maneira que fica difícil querer parar a leitura para fazer alguma outra coisa, a não ser chegar até às linhas finais do que se lê. As decisões que ele toma para resolver problemas na trama e para apresentar personagens, por exemplo, são tão simples e ricas que creio que o cinema, de fato, jamais poderia fazer sem ter tanta alegoria em um filme de ficção científica.
Outro fato que chama a atenção é o destino não tão perfeito que alguns de seus protagonistas tomam. Nem todos eles terminam ilesos, há algo que se perde para eles no meio do caminho. Esse é um traço bastante recorrente também na obra do Stephen King. Ser pioneiro em temas como o questionamento da realidade, se o indivíduo é, realmente, um humano ou alguma máquina que simula uma vida, e até mesmo a abordagem mais arriscada de mutantes em histórias sci-fi, são diferenciais que elevam a riqueza da sua obra e que aparecem aqui de maneira muito bem posicionada. Creio que, para o cinema, nem tudo é tão fácil de se adequar. Mas, uma vez assinado um contrato de permissão de uso da obra...
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